sexta-feira, 3 de agosto de 2012

ERROLL GARNER E SEUS IGUAIS


Texto de Luiz Britto recebido no dia 03.08.2012


Assisto, esses dias, um DVD com uma exibição de Erroll Garner em 1964, num programa da televisão britânica. Erroll Garner era um pianista de jazz extremamente original --- e não poderia deixar de ser, pois tocava de ouvido, inventou seu próprio léxico, tocava piano o tempo todo, isso desde os 3 anos de idade até sua morte em 1977, aos 53 anos. Compôs algumas músicas, sendo a mais notável “Misty”, um clássico da música americana. Um “standard” sempre ouvido, sempre tocado ou cantado pelos anos a fora, com centenas ou milhares de gravações. Como as músicas de Cole Porter, Gershwin, Irving Berlin, Kern, poucos outros.

Garner era um homem extremamente pequeno --- media apenas 5 pés e 2 polegadas, ou seja, 1,58m. Pra tocar, ele colocava o grosso catálogo telefônico de Manhattan no banco do piano a fim de alcançar uma altura conveniente, e, no piano, ele sorri, faz caretas, parece se divertir muito com a sua execução. Sublinha o romantismo de certas passagens, o veloz ritmo de outras, parece estar muito satisfeito. Evidentemente ele não é tão divertido ou histriônico como Fats Waller ou Armstrong, mas dá seus pulinhos.

O que me surpreende, assistindo esse vídeo, é o tamanho da mão de Garner, seus dedinhos curtos e grossos, que lembram uns pedaços de pau. Ele quase não flexiona esses dedos, corre com eles, em alta velocidade, pelo teclado, criando uma imensa riqueza de sons. Como se ele tivesse quatro mãos e não duas --- e isso quando ele praticamente quase não tinha nem duas.

E aí me veio uma reflexão. Como a musicalidade, a necessidade de expressão, a vontade de se exprimir no piano vencesse todos os obstáculos, derrotasse todas as barreiras, o bom-senso, a escolaridade, a necessidade de um professor. Pensei comigo que a sua habilidade natural venceu todas essas barreiras. Essa musicalidade se expandiu, utilizou o que era disponível, o que lhe tinha sido dado: aqueles dedos curtos e grossos, pequenas e duras estacas, e certamente os braços igualmente curtos...

Nada disso o conteve. Que adiantaram os padrões estabelecidos, o juízo convencional que define que o pianista deve ter mão grande, dedos finos e compridos, e que a palma da mão, aberta, deve alcançar não sei quantas teclas...

Erroll Garner estava aí para desfazer esses mitos, jogar por terra essas tolas convenções --- e firmar a superioridade do espírito sobre a matéria. A musicalidade do indivíduo contra todos os obstáculos, naturais ou criados.

Em igual fogo de expressão, Van Gogh tirou a tinta diretamente do tubo, espremeu os tubos na tela, usou os pincéis até o fim, os pincéis já sem as cerdas, novamente como estacas ou estiletes. Nada o deteve. O seu espírito venceu as convenções, naquele afã de expressão. E Pollock nem usou os pincéis, foi despejando, borrifando a tinta líquida, lançada das latas ou vasilhas diretamente na tela --- esta não mais no cavalete ou presa em alguma superfície vertical, mas no chão.

A semelhança com as figuras retratadas também foi rompida por Michelangelo. Fez uma escultura tendo um dos Médicis como seu modelo e aí o criticaram, que as feições não eram as do retratado. E Michelangelo então respondeu:

--- Daqui a duzentos anos não vai fazer diferença alguma...

Ou coisa semelhante.

O mesmo Michelangelo tomava como modelos, para as suas figuras titânicas da Capela Sistina, ou suas esculturas, pobres e raquíticos trabalhadores de Carrara --- uma gente pequena que nem de longe se assemelhava ao vigor, tamanho, envergadura, pujança de suas imagens de extrema força e energia. E o próprio Michelangelo era outro sujeito pequeno. Salvo engano, só tinha 1,65m e pesava uns 50 quilos.

Suas enormes esculturas, sua pintura cheia de vigor, as figuras hercúleas, não eram mais que uma projeção do seu espírito. Sua visão. Sua força interior transmudada numa expressão física e externa.

E assim Tolstoy, que era também pequeno, e criou dois colossos da literatura, os vastos panoramas (externos e internos) de “Guerra e Paz” e “Ana Karenina”. E Portinari, também pequeno, com aquelas figuras ciclópicas, os trabalhadores de uma dimensão física extraordinária, pés enormes (que ele não tinha) firmemente plantados no chão...

Tenho visto, esses dias, alguns filmes russos --- alguns ainda da época do cinema mudo, como “Outubro”, de Eisenstein, e “O Fim de São Petersburgo”, de Pudovkin, outros mais recentes, do cinema falado, como “A Infância de Ivan” ou “O Sacrifício”, de Tarkovsky. Ou, ainda, “A Balada do Soldado”, de Tchukhrai, do mais fino humanismo, um lirismo notável.

É incrível a qualidade do cinema russo, ou, melhor dizendo, do cinema soviético. Nos filmes de Eisenstein e Pudovkin estão o início e também o fim do cinema. Alfa e ômega. Cinema como arte, como expressão soberana, rica, independente e forte. Extremamente fílmica, cinematográfica. A expressão pela imagem em movimento. A linguagem da imagem que é uma linguagem do cinema, em sua mais pura essência. E isso aliado a temas ricos, essenciais e humanos fornecidos pela Revolução Russa.

Não é um cinema para comedores de pipoca. Não é um cinema vazio. É um cinema com extrema força e vitalidade. Rico dinamismo.

A pujança, a extrema sensibilidade de Tarkovsky já se manifesta no seu primeiro filme, “A Infância de Ivan”, e continua, ainda mais refinada, no seu último, “O Sacrifício”. Esse é quase um filme de Ingmar Bergman, pois foi feito na Suécia (numa ilha perto de Faro, onde Bergman morava e onde foram rodados muitos dos seus filmes), é falado em sueco, tem atores suecos --- como Erland Josephson e Allan Edwall --- que trabalharam em vários filmes de Bergman. Enfim, lembra um filme de Bergman pelo tema meio reflexivo, filosófico, a profundidade do assunto.

Mas aí cessa a semelhança, porque Tarkovsky tem uma sensibilidade provavelmente superior à de Bergman em se tratando de enquadramentos cinematográficos, ambientação, a poética sugerida pelas imagens. As árvores, os caminhos, as personagens nas salas, no campo, o que seja, tudo ganha uma dimensão maior, além do meramente visual, natural ou narrativo. Ganha profundidade e significado.

Perseguido na União Soviética, sem poder retornar ao seu país, já muito doente, com um câncer, Tarkovsky aceita fazer esse filme na Suécia, com o excepcional câmera Sven Nykvist, o favorito de Bergman, com atores bergmanianos, em sueco --- mas foge da tutela de Bergman, faz mais um Tarkovsky, o último.

Seu espírito vence a matéria. Ele utiliza os instrumentos ou recursos possíveis, de que dispõe. Expressa-se. É ele mesmo. Sobrepuja as gaiolas, as jaulas, as contenções. Não faz uma cópia e nem uma imitação nanica. Ele é ele mesmo.            

Bergman, com toda a sua riqueza como cineasta, permanece mais na seara de diretor de atores (pois isso é o que ele era o ano todo: um diretor de teatro, muito influenciado, creio, por Ibsen e Tchekhov), enquanto Tarkovsky fornece uma visão mais transcendental. Uma reflexão superior. Ele enxerga, ou pretende exprimir, em profundidade, tudo que há de maravilhoso e sensível, perceptível no mundo, e coisas e pessoas que nos rodeiam. Ele quer transcender, ir além. Alçar-se em voo. Compreender. Penetrar.        

É interessante que esse cinema é um cinema realizado com poucos recursos, em condições modestas, não tem a grandiloquência vazia e oca, o besteirol dos filmes de Hollywood. O besteirol de “Os Canhões de Navarone”, por exemplo --- as grandes óperas imbecis.

Lembro, ainda, que nesses tempos de Eisenstein e Pudovkin, floresceu também o excelente cinema alemão, com sua riqueza expressionista, a qualidade fílmica extrema, também insuperável em força e acuidade, isso numa época tumultuada, a Alemanha no pós-guerra, a economia em frangalhos, a inflação galopante, as loucuras de Hitler já no horizonte. Filmes realizados por judeus, os eternos perseguidos, em todas as épocas e civilizações.

Com as pedras que lhes foram lançadas, eles construíram sólido e rico muro, inigualável mosaico.

O espírito vencendo mais uma vez as limitações da matéria, firmando-se, o barro virando sólida pedra, a argila moldada representando todas as nossas aspirações. Cada arte fornecendo para os artistas --- não importa quão limitados ou impróprios (aparentemente) os meios --- as mais sólidas argamassas e andaimes para a construção mais grandiosa, rica e verdadeira.

Pois o que sobressai sempre, não importa como, é o espírito humano. A extrema riqueza do espírito humano. Sua variedade, vitalidade, renomado e único sopro da vida que só a morte poderá extinguir.

 Assistam "Misty": http://www.youtube.com/watch?v=P_tAU3GM9XI

Luiz Britto é artista plástico e escultor --- 63 livros publicados